COMO ASSAR UM CICLISTA
Ontem pedalei direto das 08:00 hs às 21:30, grande parte do tempo sob temporal pesado. Essa foi a razão de eu não ter postado nada… Dia virá em que com um chip instalado atrás da orelha conseguiremos internetar da estrada mesmo, só com o pensamento. Mas enquanto esse dia não chega, retomemos a linha do tempo…
Estava eu na lan-house em Contagalo no domingo à tarde pesquisando no Google formas indolores de suicídio quando chegou o Valdir, convidando-me a dar um giro de carro pela cidade, patrocinado pelo Rodrigo e sua esposa. Passamos na casa do Leandro e saímos os 5 no Fiat. Foi bem legal porque pude visitar partes da cidade alta, que desconhecia. Pareceram-me os pontos mais modernos de Cantagalo.
Depois de deixarmos em casa a esposa do Rodrigo, fomos os 4 jogar sinuca e ali ficamos um bom tempo confraternizando ao sabor de umas cervejinhas.
Ao retornar ao hotel, dei pela falta dos meus óculos de sol (não “os de pedalar”, mas “os de sair”), que me acompanhavam há muito tempo e voltei correndo à lan-house. Em vão… adeus companheiro. Essa foi uma falta sentida, confesso…
Embora um tanto triste, atendendo a inúmeros pedidos fiz uma foto minha vestido com a famigerada capa amarela…
À noite, fui levado pelo Leandro a comparecer a uma reunião do Interact, na sede do Rotary local. O Interact é um grupo interno do Rotary, composto por jovens e, portanto, o Valdir e eu éramos os únicos anciãos presentes.
Foi muito bom, tive a oportunidade de expor o Projeto Rodas Livres e ao final fui levado pelo Leandro à casa de seu sogro, Wilson, onde pude saborear um delicioso virado. Achei ótimo estar em meio a uma família e a comida lembrou-me a culinária de minha querida e saudosíssima vovó Otília. Ali conheci uma novidade: palitos de dente feitos de bambu, muito mais afiados e resistentes. Diante de tanta qualidade, fiquei me perguntando por que ainda se vendem palitos de madeira (os dentistas advertem: palitos são prejudiciais à dentição, não importa o material de que são feitos. Prefira fio dental).
Chegada a segunda-feira parti logo cedo, às 08:00 hs, pois aguardavam-me quase 100 kms de chão. O Valdir veio reportar a saída e pedalou comigo por cerca de1 km…
Valeu, Valdir, você é um exemplo de pessoa íntegra, altruísta e batalhadora. Até a próxima, companheiro.
Eis-me de novo na estrada. Os primeiros quilômetros foram condescendentes e avancei rápido. Cheguei a me empolgar achando que seria fácil… mas nada como um morro após o outro para trazer o cidadão à realidade. O dia estava nublado e isso era muito bem-vindo, pois o sol aberto é um dos maiores inimigos. Mas ameaçava chuva, e para mim pedalar molhado seria uma novidade. Por mais de um mês na estrada, tenho sido feliz em conseguir burlar as tentativas pluviais de São Pedro.
Passados uns 8 kms, cheguei à primeira cidade, Virmond.
Passei reto e buscando seguir as recomendações que recebi por e-mail do Darcio, de comer algo de meia em meia hora para não ser acometido pelo súbito “apagão” de energia que sofri quando chegava em Cantagalo. E dá-lhe granola, que é prática, saborosa e nutritiva.
Em breve chegava a hora do “almoço” e foi então que percebi que havia perdido a guarnição plástica que segura os óculos de sol (os “de pedalar) na orelha. Putz… mas que perseguição.
Sigamos. Logo atingia a primeira grande cidade do trajeto, Laranjeiras do Sul, que tinha à entrada um simpático rolo compressor embalsamado.
Pouco adiante, uma placa chamou-me a atenção. Ela tinha os dizeres “Brasil – Viapanam”.
E foi então que me dei conta que estava já na decantada Via Panamericana, embora não tenha entendido muito bem, pois sempre achei que na América do Sul a Panamericana corresse paralela ao Pacífico… alguém sabe explicar? Quando parei para a segunda refeição completa, após 50 km e 6 horas de pedal, senti uma ponta de desespero ao imaginar que faltavam ainda outras 6 horas para atingir o objetivo. Minha média horária é muito baixa, entre 8 e 9 km/h… Mas tratei de esfriar a cabeça e aquecer as pernas.
O tempo fechava, nuvens negras formavam-se ameaçadoras sobre meu capacete.
Resoluto, mantinha o pensamento positivo de que chegaria seco ao meu destino. Outra placa, outra surpresa. Desta vez “Início de Aldeamento Indígena”.
Uau! E logo via índios aculturados por toda a lateral da estrada, em sua maioria vendendo artesanatos. Crianças indígenas em profusão. Muitas mesmo.
Num dado momento meus óculos, que estavam presos à gola da camiseta (porque sem a guarnição não havia como utilizar o barbante que os prendia atrás da nuca) , voaram e tive de retornar para resgatá-los. E veio a chuva!
E já veio pesada. Parei para cobrir a bolsa de guidão, vestir a capa e fazer uma foto.
Mas foi só o que deu pra fazer, pois em seguida o céu despencou com violência. Toneladas de água jorravam nuvens abaixo. A carga tornou-se mais pesada, a capa mostrou-se um problema sério nas descidas, quando infla-se ridiculamente tornando-se uma espécie de pára-quedas ou freio aerodinâmico, o que tira completamente a estabilidade da bicicleta.
Não gostei nada da experiência de descer ladeiras molhadas ziguezagueando forçadamente com carretas produzindo spray à minha esquerda. Para completar, percebi que perdera meus óculos escuros (sim, os “de pedalar”), que devem ter voado sem que percebesse. Caralho!!! (com perdão da expressão inevitável)… então em dois dias consegui a proeza de perder meus dois óculos escuros. Desconfiei de praga rogada por alguém. Não sei qual dos dois fará mais falta. E repô-los, ainda que apenas um deles, será um ônus assaz inoportuno.
As horas passavam e nada de chegar. A neblina tomava conta. Escurecia.
Em pouco tempo, era já noite fechada e eu ainda estava muito longe do ponto de chegada. Pedalando sempre, com fé nos resultados, foi com surpresa que por volta das 19:30 hs, em plena escuridão, constatei que o pneu traseiro estava furado. Era noite, chovia e o pneu traseiro estava furado… puta-que-pariu, com todo o respeito. Pensei em enchê-lo e tentar chegar – a única opção seria empurrar pelos quilômetros faltantes. Por sorte ou um daqueles auxílios devidos a São Cristóvão dos Cicloturistas, vi um posto de gasolina e achei melhor enchê-lo lá.
“Por que não vai ao borracheiro ali? Ainda está aberto”, me diz o frentista. Fui e fui muito bem recebido pelo Danilo, que me ajudou a retirar a roda traseira (a mais complicada) e trocar a câmara. Não queria cobrar pelo serviço e ofereceu-me um canto para que me instalasse até a manhã seguinte”. Porém faltavam apenas12 km para eu chegar ao conforto do hotel que a Veralice havia descolado em Guaraniaçu… Agradeci-lhe e disse que voltaria à estrada.
– Acho loucura, ele disse.
– Eu também, respondi.
E fui. Pedalar no breu da noite numa estrada federal molhada não é exatamente aconselhável, mas tinha fé de que se nenhum pneu resolvesse furar novamente ou coisa parecida minhas chances eram muito boas. Assim, reuni as energias que restavam e toquei sem parar. O que incomodava era uma assadura na virilha. Nossa… esse é um problema considerável.
Enfim, cheguei ao posto de combustíveis do trevo de entrada de Guaraniaçu. Por via das dúvidas, parei e jantei, porque não havia comido nada salgado o dia inteiro e desconfiava que àquela hora na cidade não encontraria mais nada. E subi a rampa que leva ao centro. Não gostei. Uma via sem graça, que prometia conduzir a alguma localidade soturna. Qual não foi minha surpresa ao atingir a rua principal, bem iluminada e guarnecida de bem cuidadas fachadas de casas e comércios, ainda que todos fechados.
Ao chegar no hotel, abri todos os alforjes e espalhei itens pingantes por todo o quarto. Meu saco-de-dormir estava encharcado. Minhas roupas, lavei-as e as pus igualmente para secar. Já não havia mais onde nada pendurar e o aposento ficou com um aspecto carnavalesco. As checar as assaduras, descobri que eram sérias, não só na virilha mas no cóccix. Descobri que esse é um dos problemas de se pedalar molhado, além do perigo e de ensopar todo o equipamento. Não gostei mesmo, vou evitar a todo custo, ainda que saiba ser impossível ficar seco o tempo todo.
Agora pela manhã coloquei a tralha toda para secar ao sol (um lindo sol, em contraste)…
… e saí para perambular pela cidade. Surpreendentemente graciosa, por sinal.
Infelizmente, a previsão para quinta-feira, dia da minha partida, é de chuva pesada novamente. Cheguei a considerar a possibilidade de ficar aqui um dia a mais. Mas não resolveria… a previsão para a sexta-feira não é diferente. Pedalar assado ninguém merece.
RESUMO CICLÍSTICO (de ontem):
DATA: 10. Outubro. 2011 / Segunda-feira
LOCAL: Guaraniaçú, Paraná (Brasil), ALTITUDE: 920m
POUSOS: 15
TEMPO: Nublado pela manhã. Temporal à tarde.
TEMPERATURA: 15ºC a 23ºC
KMs PEDALADOS HOJE: 99 km (Cantagalo a Guaraniaçú)
MÉDIA: 8,5 km/h
VELOCIDADE MÁXIMA: 55 km/h
HORÁRIOS PARTIDA / CHEGADA: 08:00 hs / 21:30 hs
OCORRÊNCIAS: temporal na estrada /pneu traseiro furado
TOPOGRAFIA: serras
CONDIÇÃO FÍSICA: Excelente, mas com incômodas e incapacitantes (para pedalar) assaduras.
DIAS DE ESTRADA: 38
DIAS PARADO (em reportagem, turismo ou descanso): 26
KMs PEDALADOS ACUMULADOS: 922 km
QUILOMETRAGEM TOTAL PERCORRIDA (inclui ar + mar): 922 km
Elcio!!!
Que post mais emocionante, cheio de aventuras, amigos, diversão, perigos na estrada, uau! parece um roteiro completo de um bom filme rssss.
A cidade de Cantagalo é graciosa, o Valdir incrível!!!
Bom saber que você chegou a seu destino, nos sentimos ligados a você e a preocupação é natural, se ver que não está bem pra prosseguir fique, lembre-se seu compromisso é primeiro com seu bem estar, roteiro a gente muda, altera não é mesmo?
Espero que tenha uma boa estadia em guaraniaçu que pelas fotos é bem agradável, e melhor que conseguimos apoio de pessoas muito bacanas aí 🙂
Se tiver um tempo bate um papo com o Sr. Alcides do hotel Dalla’s, ele por telefone me deu a impressão de alguem que vale a pena sentar e prosear hehehehhe e transmita um abraço meu a ele por favor!
Beijo grande… fica com Deus e aproveite a hospitalidade da cidade!
O seu Alcides é uma figura muito simpática e tem uma Rural Willys branca e vinho, restaurada, que é um espetáculo. bj
Grande Elcio, se algum dia me der na telha de seguir esta sua receita, acho que vou tentar assar “uma” ciclista, e não um.
Brincadeirinhas à parte, parabéns meu caro, segue em frente, pois seu propósito é bom e certamamente Deus o ajudará nas horas difíceis.
E que o céu não cais sobre a sua cabeça, por Tutatis
CiclistAs tá dificil, Nivaldo. No meu caminho só vejo pintar ciclistOs… isso só não é pior do que o céu cair sobre a minha cabeça, por Belenos.
Sou seu fã caraa, conheci no restaurante mt gente boa!
Grande Wesley, obrigado pelo carinho e seja bem-vindo ao site. Quando for pedalando a Cascavel, conte-nos como foi, ok? Abração
Cara !? Não foi mole dessa vez !! Admirável a sua determinação em vencer tantos obstáculos ! Parabéns !
Nesse caso, é prá frente que se anda, Nésio… Tem como voltar não,
Tio, que situação, por um lado já aprendeu várias lições nessa jornada. Pelo que vi você foi no seu limite correto? Veja tudo que não foi legal e tente aprender para a viajem se tornar mais tranquila. Que hora pra furar o pneu hein? Acho que deve considerar ficar em cidades mais próximas umas das outras, viagens mais curtas talvez? Pois quando chegar o verão talvez chova todos os dias dependendo do lugar onde vc esteja. Abração tio, e aproveite pra descansar bastante!!
É verdade. Aprendi sim… que 99 km carregado é demais para mim (dá prá fazer, mas com sofrimento…) e que preciso proteger melhor a carga com sacos de lixo, assim ao chegar não tenho de perder uma hora estendendo tudo. Abração
Ô Arabal… noventa e nove quilômetros nem em dia de primavera. Tô imaginando andar pelo acostamento em noite fechada com o farolzinho e caminhões embaçando o ar em alta velocidade. E Cantagalo tornou-se linda no final. Tomara que a estada em Guaraniaçu também o seja.
Já tá sendo, Dédo. Cantagalo é legal e fiz mais amizades, mas cidade por cidade eu me identifico mais com Guaraniaçú. Mas 99 km no mesmo dia é demais prá fazer carregado (prá mim). Vou tentar evitar…
Parabéns Élcio, ótimo post. “Estamos” chegando a marca de mil quilometros…rsrs
Devagar, mas consistentemente, né Rafael ? =)
Foi muito determinado, parabéns!
Mas, juízo, ok?!!!
Bjão
Andréa, não dá. Se eu for ter juízo, acabo voltando prá São Paulo, ué =)
Saúde e segurança em primeiro lugar, sem elas nossa aventura termina. Bjss.
E começa outra, Lulu… (ou não?) hehe… E meu irmão, sabe do meu paradeiro? bj
Ah rapáááá!!!pomada minancora àmão, e to te acompanhando por acá. Força ai e fraternal abraço!
Grande Miro… tenho Minâncora, mas para assaduras não é Hipoglós? (Dr. Ênioooo… tás na escuta?) =)
Elcio, dá licença de eu ressaltar um trecho lindíssimo da postagem de hoje.
É quando o cara da borracharia não quer cobrar pelo serviço e ainda se dispõe a descolar um lugar pra você dormir. Essa é a boa gente brasileira, espécie que parece estar se extinguindo.
Quer ver uma loucura boa ? Juntar os trapos e morar numa cidade desconhecida como essas por uns bons anos.
Pega leve, Arabal. Forçar a barra assim tá errado, parceiro.
Gostamos de você e queremos vê-lo bem.
Grande abraço.
Zeca
Concordo, Zéca. Também fiquei super feliz com este fato. Essas coisas são maravilhosas. Viva o Danilo Bernardi, borracheiro de Guaraniaçú e gente finíssima.
Que bom q superou mais uma etapa e, pelo que percebi aprendeu bastante. Vai com calma prá nossa viagem não terminar entes do tempo. Lindo o diario de hj, como disse a Veralice, roteiro de filme. Descanse… Fica com Deus. Bjossssss.
Bebel, essa viagem é que nem o programa do Chacrinha… só acaba quando termina. bj
É Elcio , as emoções estão apenas começando , boa sorte e use o velho hipoglós …hehe
O pior é que agora to usando mesmo… eita pomadinha fedida. hehe
Élcio, você tem a Força!!! Mostrou isso encarando todas as dificuldades dessa viagem!!
Mas não esqueça que na hora do pedal é só você e Deus! Apesar de toda a “Proteção” que vc tem, pedalar no escuro, com chuva forte ou neblina intensa são riscos desnecessários. Admiro sua coragem, mas prevenir é o melhor remédio !!!Beijo.
É, Alcione… ontem errei nos cálculos… bj
Tenha fé. Acredite que VIRMOND já é próxima a Paris!!! hehehe
É Zéca… mas não dá prá esquecer que estou em GUARANIAÇÚ… hehe
Elcio… tem jeito de tirar uma foto do sr. Alcides e seu carrão ?hehehehhe a curiosidade me mata 😛
Beijooo
Do carrão eu tenho : ) Depois te mando. bj
Que trecho hem, Parceiro? Vibrante pra quem está lendo no sofá…rs. Pneu furado, a capa amarelando pra velocidade, São Pedro lavando o mundo, desercão dos oculos (covardes). Parece que 99 não é seu número mais favorável, divida por 2,sempre que possível, claro. Se cuida, que a cana é doce mas é dura. Abracão
Do céu só vem água mesmo… ainda bem que não é canivete. abração