UMA BOA IDEIA
Como depois da tempestade sempre vem a bonança, a chuva passou e o sol abriu – apesar do adiantado da hora. Então saí para registrar mais algumas imagens de Quiindy…
… e aproveitei para comprar o milionésimo par de óculos escuros da viagem. Vagabundo desta vez, porque já-já ele vai pro saco do mesmo jeito que os demais.
Voltei caminhando para a hospedagem, onde havia inclusive um macaco – de raça indeterminada mas de nome Nhônho. Tentei fotografá-lo, porém não sei se por ser símio o bicho fazia tanta macaquice que era absolutamente impossível flagrá-lo com a câmera do smartphone, que infelizmente tem um delay no disparo.
Caiu a noite e voltei ao centro. A Idéia era jantar algo no mesmo local onde havia almoçado, mas acabei seduzido pelo perfume que emanava de uma das bancas de esquina, onde se tostava churrasquinhos no espeto. Pedi um, que veio acompanhando de um indefectível pedaço de mandioca cozida, como convém a qualquer refeição paraguaia, e repeti a dose. Isso feito, nada mais havia para fazer em Quiindy além de voltar para a cama e seguir na leitura das desventuras de Aliócha, o herói de “Os Irmãos Karamázovi¨.
Dentro do quarto, emputeci-me ao constatar que uma baita mariposa negra que à tarde eu havia expulsado voltara e estava instalada no alto da parede. Agora, sem a luz do dia na janela aberta para atraí-la, eu não tinha mais como expulsá-la novamente. E com aquele enorme ventilador de teto girando a noite inteira… previa ser acordado com cacos de mariposa golpeando meu corpo nú, idéia assaz desagradável. Sem ter como resolver (não iria matá-la), adormeci. Pela manhã ouvi um “plaft” que, imagino, só pode ter sido o que previra. Mas ou não foi isso ou ela sobreviveu, porque estava pousada noutro canto do aposento.
Após pagar o que devia, saio sem café e paro logo adiante para comprar algumas frutas. Estou mal-humorado e nem sei o porque. Um garotinho para sua bicicleta só prá ficar vendo eu fazer as compras. Não gosto, sinto-me o palhaço do circo. Dirijo-lhe um “Hola, todo bien?” tão seco que ele se manca e sai fora. Saio buscando um ponto onde não haja platéia para poder comer minhas frutas em paz. Só consigo isso na estrada, bem depois de ter saído da cidade. E mesmo assim acabam passando duas mulheres empurrando um carrinho de bebê por trás de mim. Tento controlar meu bode buscando analisar sua causa. Concluo que talvez seja porque a cama era péssima e estou todo dolorido… não tenho certeza, talvez a questão seja ainda mais existencial. Na dúvida, começo a gargalhar alto chacoalhando com a mão a barriga, seguindo uma técnica japonesa para levantar o astral. Não funcionou muito bem… e segui adiante assim mesmo.
O sol está plenamente aberto mas, fato estranho, não está opressivo como na segunda-feira. Ponho-me a matutar como isso é possível… Acabo por acreditar que só há duas explicações cabíveis: ou há mais umidade no ar ou é porque hoje há vento. E talvez uma terceira seja a soma das duas anteriores, que aliás é a mais provável. O fato é que hoje está bem melhor para pedalar apesar do dia iluminado que faz. Pretendo cumprir 51 kms, de Quiindy até Villa Florida, passando por Caapucú aos 31 kms. Sigo desviando das infinitas lombalditas do acostamento, o que me obriga a subir na pista a cada uma delas, já que neste trecho elas são inteiriças e não interseccionadas como em outros.
Com exatos 31 kms, surge Caapucú.
Paro na conveniência de um posto de combustível e vou direto para a geladeira onde estão as garrafinhas de água mineral. A atendente corta meu barato, informando que justo aquela geladeira não está funcionando. Morrendo de calor, fico olhando para as garrafinhas azuis do lado de dentro do vidro, tão perto e tão longe, sem saber o que fazer. Desisto de comprar alí o que quer que seja e parto. Vou sacando algumas fotos de Caapucú enquanto procuro por salada de frutas.
De promessa em promessa acabo chegando à praça principal, onde várias pessoas fazem festa ao me ver aproximar.
Um velho puxa conversa… de donde vienes, coisa e tal… eu só quero salada de frutas!
– No hay, se acabó!
– ¿Se acabó? (desacreditando…) És una broma, ¿verdad?
– No, en sério. ¿Quieres água?
– Água si, también. Pero la ensalada era para comer.
E o homem enche um copo metálico com água gelada e estende a mão. Tomo com sofreguidão, está deliciosa, acho que por causa do alumínio. Agradeço, ele não aceita pagamento. Retomo a estrada e paro logo adiante para almoçar. Se não há salada de frutas então vai carne mesmo. Mais exatamente “estofado de carne con arroz”.
Volto para o asfalto, faltam 20 kms. Penso que serão fáceis porque sinto–me disposto.
Engano–me. Começam longas subidas…
… e eu começo a sentir os efeitos do sol, com atraso porém sem falta. Escasseiam todos os negócios da beira da estrada, um a um, até que somem por completo. Quilometros e quilometros de subidas, calor e carros passando.
Aliás, só carrão. Alguns argentinos, a grande maioria paraguaios, mas no geral só máquina quente. Muitos SUVs. Não sei o que se passa por aqui, mas o povo tá podendo.
Faltam 10 kms, acentua–se o sofrimento. Paro sob uma árvore na qual o barulho das cigarras é ensurdecedor. Se a motivação delas é sexual, então está rolando o maior bacanal. Grito alto para impor respeito, quero sossego prá tomar minha água. Elas me ignoram e a festa continua.
Sinto tanta dor na lombar que por inúmeras vezes tenho de descer e empurrar.
Retomo as pedaladas contando no ciclocompudator cada volta da roda. Não vejo a hora de chegar aos 51 kms, que é quando darei por encerrada a jornada de hoje. Estou novamente derretendo e prá lá de exausto. Fico pensando em frases que li em blogs de outros cicloturistas…
“Agora, após 2 meses de estrada, pedalar 100km por dia para mim é normal “ (pedalnaestrada.com.br)
“Acordei e já estava preparado para rodar mais 120 kms hoje “ (valdonabike.com)
Fico me perguntando onde foi que eu errei. Para mim, 51 hoje é uma excelente idéia. Se tivesse de pedalar 100 me suicidaria aqui mesmo. Nao atino como possa ser isso possível, mas acho que o Osmin, da já longinqua Itararé, tinha razão quando afirmava que o rendimento deste modelo de bicicleta prejudica a quilometragem diária. Não que eu queira me eximir da responsabilidade, mas é demasiada a diferença.
Por fim, ao passar por sobre uma longa ponte, adentro os domínios de Villa Florida.
O lugar é um balneário fluvial, mas não é como eu imaginava… busco uma acomodação, só encontro um quarto mequetrefe por um preço exorbitante.
– Estamos em alta temporada, señor.
Não tenho ânimo para discutir, muito menos para voltar 2 kms, onde segundo me dizem há uma hospedagem mais em conta. Olho para a bicicleta e percebo que perdi a capa de um dos alforjes. Dou entrada neste muquifo mesmo, prevejo outra noite abafada e fico me perguntando… onde foi que eu errei ?
RESUMO CICLÍSTICO:
DATA: 10. Fevereiro. 2012 / Sexta-feira
LOCAL: Villa Florida (Departamento Misiones, Paraguai), ALTITUDE: 64 m
PAISES: 2
POUSOS: 31
TEMPO: Dia quente
TEMPERATURA: 26ºC
KMs PEDALADOS HOJE: 51 km (Quiindy a Villa Florida)
PAVIMENTO: Acostamento asfaltado, com lombalditas
MÉDIA: uns 9 km/h
VELOCIDADE MÁXIMA: ?
HORÁRIOS PARTIDA / CHEGADA: 08:00hs / 14:00hs
OCORRÊNCIAS: nada
TOPOGRAFIA: grandes elevações
CONDIÇÃO FÍSICA: Boa.
DIAS DE ESTRADA: 97
DIAS PARADO (em reportagem, turismo ou descanso): 72
KMs PEDALADOS ACUMULADOS: 1.775 km
QUILOMETRAGEM TOTAL PERCORRIDA (inclui ar + mar): 1.775 km